29 ago Pandemia distorce custos da indústria e cria ambiente para alta da inflação
29/08/2020
Não bastasse a pandemia do coronavírus ter derrubado a demanda e, por consequência, a produção das empresas, agora a indústria sofre com uma alta de até 35% dos insumos utilizados no processo produtivo, além da escassez de alguns suprimentos.
Por enquanto, as empresas estão absorvendo a maior parte desse impacto, reduzindo margens que já vinham pressionadas por causa da crise da Covid-19. Há, porém, o temor de que, em algum momento, com o crescimento da demanda, esse aumento de custos seja repassado ao consumidor, pressionando a inflação.
Alta do dólar, queda da produção de insumos devido à pandemia, retomada da produção industrial mais rápida do que o esperado e aumento das exportações em decorrência do câmbio favorável e do reaquecimento da demanda em países onde a doença já arrefeceu estão entre os fatores que explicam esse desequilíbrio entre oferta e demanda na produção, segundo as indústrias afetadas.
“Temos um grupo de empresas e compramos aço juntos. Identificamos que há uma falta de produto no mercado”, diz Homero Dornelles, consultor especialista no mercado de aço, que trabalha com 18 fabricantes de máquinas e equipamentos de grande e médio porte, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.
“Das cotações que fizemos em agosto, recebemos resposta para somente 31% dos pedidos. Mais empresas não responderam porque não tinham disponibilidade do material.”
Segundo Dornelles, como resultado dessa falta de produto, os preços do aço nos distribuidores acumulam alta de até 35% de julho a setembro —e há um novo reajuste esperado para outubro. Para o consultor, a crise da Covid-19 desequilibrou o mercado.
“Com a queda da demanda no início da pandemia, as usinas abafaram seis alto-fornos entre abril e maio, reduzindo a produção nacional em cerca de 40%”, afirma.
Nesse meio-tempo, as usinas venderam seus estoques, consumidos por setores como construção civil e máquinas agrícolas, que retomaram atividades mais cedo.
Além disso, diz Dornelles, a diminuição de embarques na China em fevereiro e março provocou desabastecimento em muitos mercados, e o Brasil aumentou exportações para atendê-los.
O dólar alto também inviabilizou importações, contribuindo para a menor oferta de aço no mercado interno, nesse momento em que o restante da indústria retoma produção.
“Isso vai ter efeito no cumprimento dos prazos de entrega das empresas, com potencial cobrança de multas e geração de inadimplência”, diz o consultor. “Trabalhar nesse campo de incerteza, quando os aços representam para máquinas e equipamentos de 35% a 60% da matéria-prima, somado à insegurança de preço, está levando a um desarranjo no mercado.”
Para José Velloso, presidente da Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos), as indústrias vivem uma situação quase “kafkiana”. “O setor de máquinas está longe de estar utilizando toda a sua capacidade produtiva, o setor de aço também, mas os preços subiram, mesmo num país sem inflação.”
O Instituto Aço Brasil, representante das usinas, diz que o setor tem plena capacidade de atender a demanda e que prioriza o atendimento ao mercado interno.
“A retomada da atividade econômica vem sendo mais rápida do que o esperado, o que é bom para o país. No ápice da pandemia, o setor chegou a operar com ociosidade de mais de 50% de sua capacidade instalada. Tão logo os setores consumidores voltaram a apresentar seus pedidos, as usinas, prontamente, religaram seus alto-fornos e estão operando normalmente”, argumenta o instituto.
Outro setor que enfrenta falta de insumos e aumento de preços são os transformadores de plásticos.
“Há um problema de oferta de PVC, polipropileno e polietileno”, relata José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Abiplast (Associação Brasileira da Indústria do Plástico).
Segundo o representante da indústria, no segmento de PVC, os reajustes chegam a superar 30% nos últimos meses.
A DVG Plásticos, fabricante de tubos, conexões, telhas e placas de PVC, por exemplo, informou em meados de agosto um reajuste de 10% em todos os seus produtos e limitação de compra por clientes. Segundo informou a empresa, em comunicado a clientes, a resina plástica teve aumento acima de 50% até agosto, e novo reajuste já é esperado para o mês de setembro.
Já a Corr Plastik, também de tubos e conexões, anunciou reajuste de 20% nos seus preços e alertou para o risco de parada de produção. “Estamos enfrentando sérias dificuldades para conseguir nos manter em mínimas condições operacionais em nossas unidades, e os riscos de paradas por falta de insumo estão cada vez mais iminentes”, informou a empresa a clientes.
Segundo a Braskem, maior fornecedora de resinas plásticas do país, o problema em PVC se deve a uma suboferta no mercado internacional e também ao apetite chinês com a retomada, num mercado que é atendido em um terço por importação.
Já em polipropileno, a empresa diz que houve um retorno muito rápido da atividade industrial, com pedidos nos últimos meses maiores do que a média do ano passado, mas que está dando conta de atendê-los, embora a preços mais altos devido à cotação internacional.
As dificuldades de suprimento afetam também indústrias que atendem o consumidor final.
No setor de bicicletas, a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares) alertou em meados de agosto para um gargalo da produção, em meio a aumento da demanda global, devido à falta de peças.
“Há um grande descompasso entre a oferta de peças dos maiores fornecedores, que estão localizados principalmente na Ásia, e o aumento da procura por bicicletas no mundo inteiro”, diz Cyro Gazola, vice-presidente do Segmento de Bicicletas da Abraciclo.
“Muitos fornecedores de componentes estão trabalhando com algo entre 120% e 130% da sua capacidade, mas, mesmo assim, não conseguem dar conta da demanda da indústria.”
Em eletroeletrônicos, a falta de componentes vindos da China enfrentada em fevereiro não se repetiu nos meses seguintes. Mas o setor ainda convive com uma alta de 30% a 40% no preço dos insumos importados.
“Tivemos dois problemas simultâneos, a desvalorização do real do ano passado para este, num setor com 70% de insumos importados, e a redução dos voos, que levou a uma alta de preços do frete de cerca de 200%”, diz Humberto Barbato, presidente da Abinee (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica).
No setor têxtil, com safra recorde de algodão, também não há falta de insumo. Mas os custos estão em alta, devido ao câmbio favorável à exportação da matéria-prima e às cotações internacionais pressionadas pela volta da atividade em regiões onde a pandemia já arrefeceu, afirma Fernando Pimentel, da Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção).
“Nos últimos 20 dias, o algodão subiu 20% a 25%”, diz Pimentel. “No mercado interno, não há espaço para fazer repasse de preços, dado o mercado consumidor reagindo, mas ainda empobrecido.”
Esse descolamento entre a alta de custos enfrentada pelos fabricantes e os preços aos consumidores fica evidente quando se observam dois dos principais índices de inflação do país.
O IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), taxa oficial de inflação medida pelo IBGE e que mensura a variação de preços para famílias com renda de 1 a 40 salários mínimos, acumula alta de 2,31% em 12 meses até julho.
Enquanto isso, o IGP-M (Índice Geral de Preços do Mercado), medido pela FGV e composto em 60% pelos preços do atacado, bateu 13,02% em 12 meses até agosto, sob impacto da alta global das commodities com a recuperação econômica e a desvalorização cambial.
Para André Braz, coordenador de índices de preço do Ibre-FGV, o repasse de preços do atacado para os consumidores pode ganhar força em 2021, com a recuperação da atividade econômica.
“À medida que o desemprego começar a diminuir, isso pode facilitar o repasse de preços”, diz Braz. “É inquestionável que há um represamento de custos”, afirma. Ele pondera, porém, que a situação fiscal do governo deve impedir uma alta maior da inflação no próximo ano, já que ela contribui para que demanda permaneça reprimida.