Carta de Conjuntura

 

Carta de Conjuntura econômica produzida pelo diretor de economia da Abinee, com base em informações nos indicadores do setor realizados pelo Departamento de Economia e, também, nos aspectos econômicos do país e do mundo.

    1. O custo unitário do trabalho (CUT)

A capacidade da indústria de competir na economia global depende de um amplo conjunto de variáveis macro e microeconômicas. Uma dessas variáveis é o custo unitário do trabalho (CUT), cujas estimativas serão apresentadas abaixo. Na economia globalizada de hoje, os produtores de manufaturas adquirem insumos a preços internacionais e vendem seus produtos a preços internacionais. Isso se tornou possível com a abertura do comércio mundial de bens industriais, ou seja, o rebaixamento generalizado de tarifas e outras barreiras não-tarifárias à importação e exportação desses bens. É uma boa aproximação dizer que, a nível mundial, as empresas são price-takers nos mercados de insumos e de produto. O valor adicionado doméstico, composto pela renda bruta do capital e do trabalho, comparado com o valor adicionado em outros países, é um determinante de primeira ordem do grau de competitividade industrial (1).

O conceito do CUT pode ser derivado a partir da seguinte equação:

pY=(1+m)wL

onde p = preço do produto, Y = quantidade produzida, w = salário médio, L = volume de

emprego e m = taxa de mark-up

A remuneração do capital é o custo fixo da empresa e se compõe do fundo de depreciação do estoque de capital mais o lucro bruto. O custo variável é dado pelo custo da mão de obra. A hipótese é que a renda bruta do capital resulta da aplicação de uma taxa de mark-up (m) sobre o custo variável (da mão de obra). Sob livre comércio internacional, como suposto acima, a margem bruta é um elemento residual, ou seja, o que “sobra” para a empresa depois de cobertos os custos variáveis de produção (insumos e mão de obra). Se a empresa é competitiva, essa margem será suficiente para cobrir a reposição do capital desgastado pelo uso e pela obsolescência e gerar uma taxa de lucro semelhante a outros setores da economia (custo de oportunidade do capital). Então a empresa se mantém no negócio e pode realizar os investimentos em capital e tecnologia necessários para garantir sua competitividade ao longo do tempo. Portanto, pode-se definir o CUT como o valor do salário real dividido pela produtividade média da mão de obra:

CUT = (w/p)(1/s),s=Y/L  

Uma desvantagem competitiva da indústria doméstica existe quando, num determinado país:

  • O custo do trabalho é mais elevado do que no resto do mundo, seja porque os salários são mais altos ou porque a tributação sobre eles é maior.
  • A produtividade da mão de obra é mais baixa, devido à menor qualificação dos trabalhadores ou à legislação onerosa e distorcida sobre as relações de trabalho.
  • A tributação sobre os lucros é maior, o que obriga a indústria a ter margens brutas (m) maiores do que nos demais países.
  • A taxa de câmbio estiver sobrevalorizada, por razões macroeconômicas ou de política econômica, fazendo com que os preços dos produtos locais e os salários, medidos em dólares, sejam mais elevados.

O conceito do CUT serve para medir os efeitos sobre a competitividade dos fatores (1), (2) e, quando medido em dólares, também do fator (4).

    1. Estimativas do CUT para a indústria brasileira

Existem dois conjuntos de dados que permitem estimar o CUT. O primeiro são os indicadores industriais da CNI (Confederação Nacional da Indústria) e o segundo são a pesquisa industrial mensal (PIM) e a PNAD contínua do IBGE.

Os Gráficos 1 e 2 mostram as estimativas do CUT extraídas dos dados da CNI a partir de 2006. Indicados no gráfico estão dois fenômenos exógenos que impactaram transitoriamente o CUT: a greve dos caminhoneiros de 2018 e o lockdown decretado durante a pandemia de 2020. No período pós-pandemia, observam-se duas fases: a elevação contínua entre 2021 e 2023 e a queda em 2024. A explicação para isso está no Gráfico 2, que apresenta os dois componentes do CUT: o salário médio real na indústria e a produtividade média da mão de obra. Os dois componentes têm caminhado em direções opostas a partir de 2021. A produtividade média subiu depois da pandemia com a retomada das atividades e o salário real caiu com o aumento extraordinário da taxa de inflação entre 2021 e 2022. Em 2023, a tendência se inverte: o salário real começa a subir e a produtividade a cair e, em 2024, os dois componentes sobem, mas a produtividade sobe mais do que o salário real, reduzindo o CUT.

 

 Os Gráficos 3 e 4 mostram as mesmas variáveis, utilizando-se os dados do IBGE. Em geral, o comportamento das variáveis é bastante próximo nas duas fontes, o que sugere que provavelmente as estimativas se aproximam da realidade. Entretanto, existe uma discrepância no ano de 2024 (dados até agosto): o CUT cai, segundo a CNI e sobe segundo o IBGE. A razão está no comportamento da produtividade, que fica estagnada no IBGE e sobe na CNI.

 

Finalmente, podemos calcular o custo unitário do trabalho em dólares, bastando para isso dividir o CUT pela taxa de câmbio. O Gráfico 5 mostra a queda expressiva do CUT-dólar a partir da crise de 2015-16 e novamente após a pandemia até o presente, fruto da forte desvalorização do real que ocorreu nesse período. Este indicador sugere que, tudo o mais constante, a competitividade da indústria brasileira vis a vis o resto do mundo tem aumentado. Uma evidência disso pode ser vista no valor exportado de bens manufaturados, que tem se expandido substancialmente no período pós-pandemia, como mostra o Gráfico 6.

 

¹ O Brasil não se encaixa nesta hipótese, porque as barreiras tarifárias à importação, em geral, o que não ocorre no setor eletroeletrônico, são mais elevadas do que as dos países industriais. Este fato reduz, mas não elimina, a utilidade do CUT como medida de competitividade.

Em 18 de setembro, o Banco Central anunciou a elevação de sua meta para a taxa selic de 10,5% para 10,75% ao ano (aumento de 0,25 ponto percentual). No mesmo dia, o Federal Reserve anunciou a redução de sua meta para a fed funds rate do intervalo de 5,25-5,50% para o intervalo de 4,75-5,00% (redução de 0,5 ponto percentual). Nos últimos meses, o Banco Central Europeu (BCE) realizou duas reduções de sua deposit facility rate (a taxa utilizada para sua política monetária) para o nível atual de 3,5% ao ano. O Brasil está caminhando na contramão da tendência mundial?

A decisão do Fed é coerente com o cenário para a economia norte-americana previsto por aquele banco no momento, sumarizado no Quadro 1. Nas atuais condições da economia, a expectativa é de que a taxa de inflação, medida pelo PCE, atualmente em 2,3% ao ano, convirja para a meta de 2% em 2026 e assim permaneça no longo prazo. Isso justificaria uma redução adicional de um ponto percentual da fed funds rate em 2025, aterrissando no nível considerado de equilíbrio de 2,9% a partir de 2026 (juro real da ordem de 0,9% ao ano). Esta é uma estratégia bastante gradualista. Situação semelhante ocorre na Zona do Euro, onde a taxa de inflação está a caminho dos 2% ao ano, conforme a expectativa do BCE (1).         

 O movimento em direção oposta do juro no Brasil e no exterior pode ser visto no Gráfico 1 abaixo, onde a taxa selic é comparada com a taxa de juro de “paridade”, esta definida pelo produto da fed funds rate e do CDS (credit default swap) como medida do risco-Brasil. O aumento da distância entre essas duas taxas implica que os títulos brasileiros se tornam mais atrativos em relação aos títulos em outras moedas, o que pode induzir aumento da entrada de capital de arbitragem e apreciação da taxa de câmbio. Por sua vez, a apreciação cambial tem efeito deflacionário interno, através da redução dos preços dos bens exportáveis e importáveis. Por este caminho, o aumento do juro interno ajuda na redução da taxa de inflação (2).    


Ao atual nível da selic, a taxa real de juro de curto prazo encontra-se ao redor de 6,4% ao ano. O Gráfico 2 mostra duas medidas de juro real. O juro real ex ante ou antecipado é calculado pela diferença entre a taxa nominal corrente e a expectativa de inflação para os próximos 12 meses, apurada no Boletim Focus do Banco Central. Se supusermos que os dados do boletim refletem de fato a média das expectativas de inflação na economia, esta medida revela o juro real que os agentes antecipam para o futuro imediato. A segunda medida é o juro real ex post (realizado) medida pela diferença entre a taxa nominal prevalecente 12 meses atras e a taxa de inflação ocorrida nos últimos 12 meses. Um indivíduo que comprou um título há 12 meses (ou tomou um empréstimo) à taxa selic, um ano depois realizou uma taxa real dada pela diferença entre a taxa nominal na data de compra e a taxa de inflação ocorrida no período. A diferença entre essas duas medidas decorre dos desvios da inflação esperada em relação à inflação efetivamente realizada.

A taxa real de 6,4% está acima da chamada taxa “neutra”, estimada pelos modelos econométricos utilizados pelo Banco Central em 4,75%. Em teoria, a taxa neutra, se ela de fato existe e está corretamente estimada, seria aquela que manteria a taxa de inflação constante no tempo, dada uma série de outras condições macroeconômicas. Como a taxa corrente de inflação está bem acima da meta de 3% ao ano (ao redor de 4%), a lógica do regime de metas requer que a taxa real se mantenha acima da taxa neutra para trazer a inflação para a meta. Desse ponto de vista, a decisão do Banco Central de elevar a selic em 0,25 ponto percentual está coerente com o regime, independentemente do que se passa com as taxas internacionais.

O problema fundamental que o país tem enfrentado é o descasamento entre a política monetária e a política fiscal do governo. Nos últimos 12 meses terminados em agosto, a despesa total do Governo Federal aumentou 16,5% (11,8% em termos reais), ao passo que sua receita líquida aumentou 11,4% (6,9% em termos reais). Ou seja, a despeito do robusto crescimento da receita, a despesa subiu ainda mais, com várias consequências para a economia.

Primeiro, o governo tem expandido fortemente a demanda agregada pela expansão de sua despesa, ao mesmo tempo em que tem retirado poder de compra do setor privado pelo aumento de sua receita. O efeito líquido sobre a demanda deve ser positivo, principalmente se considerarmos que o gasto público é basicamente de consumo corrente (custeio da máquina pública) e de transferências de renda.

Segundo, a necessidade de financiar o déficit pressiona para cima as taxas de juro no mercado de capitais e aumenta a participação da dívida pública nos ativos financeiros (e no PIB), gerando um efeito de expulsão do setor privado e levantando dúvidas sobre a solvência do governo. É claro que esta situação desestimula os investimentos produtivos. De fato, o crescimento atual da economia tem sido movido pelo consumo, com pouca ou nenhuma expansão dos investimentos, tanto internos quanto externos.

Terceiro, a expansão dos chamados “gastos sociais” tem produzido um efeito negativo no mercado de trabalho, na medida em que estimula muitos potenciais trabalhadores a sair do mercado para beneficiar-se da renda transferida pelo governo. Em vários setores, isso gera escassez de trabalhadores, pressiona os salários reais para cima e alimenta a inércia inflacionária. A moderação desses programas de transferência de renda poderia gerar mais empregos, incentivar o investimento e a distribuição de renda de forma positiva, ou seja, aumentaria o consumo com menor pressão inflacionária.

Isso nos coloca no pior dos mundos: expansão fiscal e contração monetária (easy fiscal-tight money), uma combinação nociva ao crescimento econômico no médio prazo, ainda que produza um suspiro de crescimento no curto prazo. Portanto, o problema do elevado juro real no Brasil tem que ser visto num contexto macroeconômico mais amplo, e não simplesmente como uma decisão arbitrária ou “culpa” do Banco Central.      

(1) Veja-se o discurso de P. R. Lane, membro do Executive Board do BCE em 16 de setembro, transcrito em www.ecb.europa.eu.

(2)  A taxa de paridade mostrada no Gráfico 1 é uma aproximação grosseira, por não levar em conta vários outros fatores que determinam os movimentos de capital de curto prazo. 

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

Os dois principais índices de preços ao consumidor produzidos pelo IBGE são o Indice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e o Indice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC). O primeiro é utilizado como indexador de contratos em geral (títulos públicos e privados, aluguéis, dívidas, etc.) e é considerado a medida oficial da inflação no país, ao passo que o segundo tem servido de base para as negociações salariais (contratos de trabalho). Por serem metodologicamente mais adequados, esses índices colocaram em desuso os antigos índices gerais de preços (IGP-DI e IGP-M) elaborados pela Fundação Getúlio Vargas.Ambos são elaborados a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017/18, que mede a estrutura de gastos dos consumidores brasileiros em onze áreas metropolitanas, sendo os principais pesos os de São Paulo (32,3%), Rio de Janeiro (9,4%), Belo Horizonte (9,7%) e Porto Alegre (8,6%). A diferença entre os índices reside nas faixas de renda definidas para cada um: o IPCA abrange consumidores com renda mensal entre 1 e 40 salários-mínimos e o INPC entre 1 e 5 salários-mínimos.O Quadro 1 mostra a estrutura de ponderação dos dois índices entre as nove categorias de despesa em que eles são divididos. As diferenças de pesos entre eles não são muito grandes. Como se deveria esperar, indivíduos de rendas mais baixas gastam mais com “alimentos e bebidas” e com “habitação”, ao passo que indivíduos de rendas mais altas gastam mais com “saúde e cuidados pessoais”, “educação” e “despesas pessoais”.A correlação entre as taxas de variação anuais dos dois índices é de praticamente um (0,999902). As divergências entre elas em períodos curtos (alguns meses) se deve a aumentos diferenciados e imprevisíveis das várias categorias de despesa. O Gráfico 1 apresenta as variações anuais dos dois índices desde o ano 2000. Como se pode ver, as duas séries são quase iguais, o que torna praticamente indiferente o uso de uma ou outra como indexador de contratos. Por tradição, o INPC é base para reajustes salariais e o IPCA para todos os demais tipos de contratos.O Gráfico 2, que cobre o período 2028-24 (julho), ilustra as diferenças que podem surgir entre as duas medidas de inflação ao consumidor no curto prazo. Entre meados de 2020 e meados de 2022, a variação do INPC foi superior à do IPCA, provavelmente por conta do boom de preços de commodities associado à pandemia. A partir de 2023, o INPC passou a correr por baixo do IPCA.A conclusão desse exercício parece clara: o uso de um ou outro indexador é mais uma questão de convenção ou tradição do que uma questão substantiva, já que no longo prazo eles tendem a ter o mesmo comportamento. Só faria sentido a preferência por um ou outro se fosse possível antecipar ou prever como os preços dos vários grupos de despesa irão se comportar no futuro, o que parece impossível.

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

A partir de um máximo de 15%, atingido durante a pandemia em 2020, a taxa de desemprego medida pelo IBGE tem caído continuamente, situando-se hoje ao redor de 7,5% da força de trabalho, conforme pode ser visto no Gráfico 1. Voltamos a uma situação semelhante à de antes da grande recessão de 2015-16. Naquela época, a taxa de desemprego saiu de cerca de 7% em 2014 e subiu para um pico de 14% em 2016 e ficou oscilando acima de 12% até a ocorrência da pandemia.

A correlação entre a taxa de desemprego e uma estimativa simples do hiato do produto é da ordem de 60%. O Gráfico 2 mostra os valores dessas duas variáveis entre 2013 e 2024. O hiato foi bastante positivo durante a recessão de 2015-16, em que o PIB caiu cerca de 7%, e novamente durante a pandemia de 2020. Com a recuperação pós-pandemia e o modesto crescimento posterior, ele tornou-se levemente negativo e assim permanece até hoje (1).

A forte e surpreendente queda da taxa de desemprego resulta da dinâmica recente do mercado de trabalho, assim como da expansão dos programas sociais do governo, como procuraremos mostrar a seguir.

Em primeiro lugar, devemos notar a queda tanto da taxa de crescimento da população total (POP) como da taxa de crescimento da população em idade ativa (PIA), como ilustra o Gráfico 3. Na verdade, com o envelhecimento da população, a expansão da PIA vem-se aproximando da expansão da POP. Nos últimos anos, a POP tem crescido ao redor de 0,7% ao ano e a PIA 0,9%. Dez anos atrás, essas taxas eram de 0,85% e 1,4% respectivamente. Uma das consequências disso é a menor pressão populacional sobre o mercado de trabalho: menos indivíduos entram no mercado (jovens) e maior número de indivíduos se retiram (velhos). Essa mudança estrutural da população ajuda a explicar a queda recente da taxa de desemprego, mesmo com o crescimento modesto do PIB (ao redor de 2% ao ano).

Por outro lado, a taxa de crescimento da PEA (população economicamente ativa) tem oscilado ao redor da POP e da PIA, como mostra o Gráfico 3. Essa variável constitui o subconjunto da PIA que se encontra no mercado de trabalho (ocupado ou desocupado) e serve de base para o cálculo da taxa de desemprego, definida pela razão desocupados/PEA. A notável exceção ocorreu durante a pandemia de 2020, quando a PEA teve uma queda inédita de cerca de 7%. A paralisação da maior parte das atividades econômicas levou muitos indivíduos a se retirarem temporariamente do mercado de trabalho pela impossibilidade de acharem uma ocupação.

Em segundo lugar, a taxa de desemprego é influenciada por mudanças na taxa de participação (TP), definida pela relação entre a PEA e a PIA, isto é, a parcela de indivíduos em idade ativa que se encontram no mercado de trabalho (empregados ou procurando emprego). O Gráfico 4 apresenta a taxa de participação por regiões do país a partir de 2012. Como já notamos acima, houve uma queda importante da TP durante o período da pandemia. Entretanto, a recuperação posterior da TP tem ficado abaixo dos níveis prévios à pandemia. Podemos argumentar que uma queda dessa variável tende a reduzir a taxa de desemprego medida pela pesquisa, pois aqueles que se retiram do mercado são exatamente os que estão desempregados. Isso ajuda a explicar a velocidade com que o desemprego tem caído.

Podemos argumentar ainda que a queda da taxa de participação pode ser consequência da expansão recente (desde a pandemia) dos programas sociais do governo (bolsa família, seguro-desemprego, abono salarial e outros), os quais estimulam indivíduos situados nos extratos de mais baixos salários a abandonar o mercado de trabalho. Uma possível evidência disso é o fato de a TP ser substancialmente mais baixa nas regiões de menor renda per capita (norte e especialmente nordeste). Essas regiões concentram parcela majoritária dos benefícios sociais concedidos pelo governo.

A análise feita acima sugere que um crescimento de 2% do PIB, se mantido por vários anos seguidos, é suficiente para manter (ou até reduzir levemente) a taxa de desemprego no nível de 7% a 8% da força de trabalho. Entretanto, este é um cenário medíocre num mundo que cresce acima de 3% ao ano e em que os países emergentes crescem quase ao dobro disso.

 

(1) O hiato do produto é a diferença percentual entre o produto “potencial” e o produto efetivo. O produto potencial foi estimado aplicando o filtro H-P à série original. É uma medida simples. O fato de que a economia atualmente cresce modestos 2% ao ano e o hiato ter-se tornado negativo indica o baixo potencial de expansão da economia brasileira.

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

A recente desvalorização do real

A rápida desvalorização de uma moeda num curto período chama a atenção geral e suscita várias interpretações. A recente desvalorização do real é um desses casos: na média mensal entre março e junho deste ano, a taxa depreciou em torno de 10% (de 5 para 5,5 por dólar). O Gráfico 1 abaixo mostra a relação entre a taxa de mercado e uma hipotética taxa de paridade de longo prazo, estimada simplesmente pela evolução relativa entre o IPCA (Brasil) e o CPI (EUA), tomando como base o ano 2000. O gráfico merece algumas explicações.

Em primeiro lugar, a escolha do ano 2000 como base de cálculo supõe que a taxa prevalecente naquele ano estava próxima da paridade de longo prazo. O Brasil ingressou no regime de câmbio flutuante em começo de 1999, logo após a crise de dívida soberana que determinou o fim do Plano Real. Depois da turbulência típica da transição de regime, a taxa de câmbio estabilizou-se ao longo de 2000 e só viria a depreciar novamente com força com a proximidade das eleições presidenciais de 2002. Portanto, 2000 parece ser um ano adequado para servir de base para a taxa de paridade.

Em segundo lugar, o gráfico mostra a volatilidade do real, que apresenta grandes desvios em torno de sua hipotética taxa de equilíbrio. Em especial, digna de nota é a forte desvalorização ocorrida no início da pandemia de 2020: a relação real-dólar passou de algo em torno de 4 para 5,5 (uma perda de valor de 27%). Mais notável ainda, a taxa permaneceu oscilando acima dos 5 reais sem nunca ter voltado ao patamar anterior à pandemia.

Em terceiro lugar, a taxa de câmbio de equilíbrio estimada pela paridade de poder de compra contém um viés para baixo dado pelo diferencial de aumento de produtividade entre o País e o resto do mundo. Como sabemos, o Brasil é um País “lento”, no sentido de que, dadas as distorções existentes na economia, a produtividade agregada tem permanecido quase estagnada desde os anos 80. Em contraposição, a maior parte do mundo tem tido aumento contínuo de produtividade. Nessas condições, a linha de paridade cambial do gráfico está subestimada. Por exemplo, se tomarmos um diferencial de produtividade de 0,6% ao ano a partir de 2000, chegaremos hoje a uma taxa de equilíbrio não de 4,4, mas de 5,1 e à conclusão de que o câmbio atual está próximo do equilíbrio (1).    

Gráfico 1

Taxa de câmbio de mercado e taxa de paridade estimada

(base = média de 2000)

Para avaliar a taxa de câmbio de qualquer país, é necessário ainda levar em conta os movimentos do dólar, como moeda predominante no mercado mundial, em relação às demais moedas. O Federal Reserve calcula a taxa efetiva do dólar, ou seja, a taxa média ponderada do dólar em relação ao conjunto de moedas mais relevantes para o comércio dos EUA. Se o dólar aprecia, isso significa que as demais moedas, como um todo, depreciam quando cotadas em dólar. O Gráfico 2 mostra a taxa de câmbio do real e a taxa efetiva do dólar entre 2018 e maio de 2024. Como seria de esperar, as duas séries têm movimentos opostos. Por exemplo, a mudança de patamar do real na pandemia de 2020 pode ser parcialmente explicada pela valorização do dólar no mesmo período. Da mesma forma, entre março e junho de 2024, o dólar apreciou 8% em relação à sua cesta de moedas, ao passo que o real depreciou cerca de 10%. É razoável concluir que parte da desvalorização do real deveu-se a fatores internacionais, além de fatores domésticos.

Gráfico 2

Taxa de câmbio do Brasil e taxa efetiva do dólar

Entre os fatores domésticos para a recente desvalorização, podemos citar dois. Primeiro, há uma percepção de que o risco fiscal brasileiro se elevou no atual governo, dada sua propensão de expandir gastos e gerar contínuos déficits primários. O resultado é o aumento da porcentagem da dívida pública no PIB e da possibilidade de uma crise de insolvência no futuro. Uma evidência disso é o aumento do prêmio de risco-país, medido pelo CDS, que saltou de 130 bp. em março para 167 bp. em junho. O segundo é o ataque constante que o governo tem feito à política de juro do Banco Central, quase às vésperas da mudança de comando do Banco. Qual será a política monetária do próximo presidente do BC, a ser indicado pelo presidente da República no final do ano? Será que iremos repetir a experiência desastrosa do governo Dilma em 2011, que ajudou a gerar a grande recessão de 2014-16? Essas incertezas levam os agentes econômicos a adotar uma postura defensiva, que contribui para a desvalorização da moeda.

Finalmente, uma maneira mais ampla de avaliar a situação do real é pelo cálculo de sua taxa de câmbio real efetiva (TCRE), uma medida mais complexa, que leva em conta seus movimentos em relação a uma cesta de moedas relevantes para o comércio brasileiro, assim como as variações de câmbio e preços dos países componentes da cesta. O objetivo da TCRE é indicar o grau de competitividade internacional do país sob a ótima do sistema cambial.

O Gráfico 3 apresenta as estimativas elaboradas pelo IPEA para a taxa efetiva real das exportações (linha vermelha) e das importações (linha azul) desde 2015. Houve um pico da TCRE durante o período da pandemia, provavelmente associado à explosão de preços de matérias-primas no mercado mundial, e posterior declínio para níveis mais próximos do período anterior. As duas curvas, que caminharam juntas até o final da pandemia, passaram a divergir fortemente nos anos mais recentes, com a surpreendente queda da TCRE das exportações. A julgar por esta medida, não se pode falar que o real esteja desvalorizado (acima do equilíbrio) aos atuais níveis da taxa de câmbio.   

 

Gráfico 3

IPEA: taxas de câmbio efetivas reais para importações

e exportações: 2015 a março 2024

(deflator INPC)

(¹) O impacto do diferencial de produtividade sobre a taxa de equilíbrio é conhecido na literatura como “efeito Balassa-Samuelson”, 
em homenagem aos economistas que o descobriram nos anos 60.

 

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

A armadilha fiscal

A experiência histórica mostra que as crises fiscais (ou de dívida soberana) resultam de longos períodos de desequilíbrios cumulativos, em que o governo viola continuamente sua restrição orçamentária e financia o déficit crônico com endividamento interno e/ou externo ([1]). Numa primeira etapa, o setor privado local e/ou internacional exige prêmios de risco soberano crescentes sobre novos financiamentos ao governo. Numa segunda etapa, a taxa real de juro sobre os títulos do governo “explode”, caracterizando uma situação de dominância fiscal. Nesta etapa, a fuga de capitais do país leva a desvalorizações contínuas da taxa de câmbio e aumento da taxa interna de inflação, o que inviabiliza a continuidade do processo e conduz eventualmente a um default. Portanto, uma crise de dívida soberana tende a se transformar também numa crise inflacionária e numa crise cambial, especialmente nos países emergentes. Além disso, se o ativo do sistema bancário doméstico contiver proporção elevada de títulos do governo, a crise fiscal pode ser acompanhada por uma crise financeira, com a quebra de parte dos bancos. As quedas dos níveis de renda e emprego têm sido de grande magnitude e de longa duração.      

Essa tipologia das crises de dívida soberana, entretanto, geralmente é ignorada pelo governo e pela classe política, que tendem a considerar que “desta vez é diferente”, como ironicamente definem Reinhart e Rogoff. O Brasil tem flertado com as crises fiscais por décadas. As experiências mais recentes foram a crise de 1998, que marcou o fim do Plano Real, e a crise de 2015, que culminou numa grande recessão. De lá para cá e a despeito do gasto extraordinário durante a pandemia, o governo tentou realizar a consolidação fiscal, isto é, um equilíbrio orçamentário mais permanente.    

Entretanto, a política fiscal mudou de direção no ano passado com a nova administração federal. O abandono da simplicidade da “lei do teto” e a adoção do complexo “novo arcabouço fiscal” abriram as portas para a expansão real dos gastos e o reaparecimento dos déficits primários, como mostra o Gráfico 1. Entre 2022 e março de 2024, houve uma queda da ordem de R$300 bilhões no resultado primário do chamado “governo central”. Como resultado disso, a relação dívida-PIB deve aumentar de 74,4% em 2023 para 78% neste ano e 81% em 2025, segundo as atuais previsões. O país voltou a flertar com a crise fiscal.

O Gráfico 2 mostra duas coisas importantes. De um lado, a despesa total, em termos reais, cresceu 16,1% em apenas 15 meses de governo. De outro lado, observa-se a intenção de aumentar a receita real para atenuar os efeitos sobre o déficit primário. Para isso, o governo busca a todo custo, apoiado na expertise da Receita Federal, explorar novas fontes de receita pela tributação do consumo e das rendas onde quer que a oportunidade se apresente. O resultado foi um aumento real de 4% na receita líquida nos últimos nove meses, ainda assim insuficiente em face da extraordinária expansão da despesa.    

As projeções para os próximos anos são preocupantes por várias razões. Em primeiro lugar, o novo arcabouço fiscal restabeleceu os pisos de gastos com saúde e educação, que tinham sido abolidos pela lei do teto. Agora, essas despesas crescerão em proporção fixa com a receita, engessando ainda mais o orçamento. Em termos práticos, para 2024 em relação a 2023, esses novos pisos implicam num aumento da ordem de 40% na despesa com educação e de 60% com saúde.

Em segundo lugar e não menos importante, foi restabelecida, agora em caráter permanente, a antiga regra de reajuste do salário-mínimo pela soma da inflação e do crescimento do PIB de dois anos antes. Estima-se que um terço da despesa total do governo esteja vinculada ao salário-mínimo. Isso inclui os benefícios previdenciários, o abono salarial, o seguro-desemprego e outros itens. Aqui o caso mais crítico é o da previdência social: nos doze últimos meses terminados em março, o déficit do RGPS (diferença entre a arrecadação e os pagamentos de benefícios) foi de R$341 bilhões ou 3% do PIB. A consequência disso é que o país será forçado a realizar uma nova reforma da previdência antes de 2030, o que frustra a expectativa que se tinha de que a reforma de 2019 durasse até o final desta década.

Em terceiro lugar, o Congresso Nacional tem aumentado fortemente em termos reais as dotações para o fundo partidário e o fundo eleitoral, assim como para as emendas parlamentares. Ou seja, existe hoje uma disposição geral (dos três poderes da República) de ampliar gastos e, dentro dos limites possíveis, aumentar as receitas. Esta é a conjuntura na qual se pretende implantar uma reforma tributária abrangente. Parece claro que a carga tributária sobre os setores produtivos, hoje ao redor de 35% do PIB, vai aumentar.

Do ponto de vista da economia como um todo, o processo de expansão fiscal iniciado em 2023 provavelmente irá reduzir ainda mais o já baixo crescimento potencial do país, seja pela estagnação da produtividade agregada, seja pela baixa taxa de investimento. Além disso, sempre existe o risco de precipitar-se uma crise de dívida soberana, como a história econômica tem abundantemente mostrado.      

([1]) Um estudo recente das crises, numa longa perspectiva histórica e cobrindo mais de 100 países
é o de C. Reinhart e K. Rogoff, This Time is Different: Eight Centuries of Financial Folly, Princeton University Press, 2011.
Existe tradução para o português feito pela Editora Actual em 2013.

 

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

 

 

Atividade industrial: sinais positivos no primeiro trimestre  

Os dados do primeiro trimestre deste ano revelam uma recuperação incipiente da produção da indústria de transformação, após a longa estagnação observada desde a saída da pandemia em 2022/23, conforme mostram o Quadro 1 e o Gráfico 1. Os dois segmentos industriais mais correlacionados com o setor elétrico e eletrônico (bens de capital e bens duráveis de consumo) tiveram crescimento expressivo no primeiro trimestre, tanto na comparação com o trimestre anterior quanto com o primeiro trimestre de 2023. A única exceção foi o setor de bens de capital, cuja produção ainda está ligeiramente abaixo da do ano passado.

É claro que ainda é prematuro projetar esses resultados para o restante do ano, mas é razoável esperar que o desempenho deste ano seja melhor do que o dos anos anteriores. Esta afirmação vale particularmente para o setor elétrico e eletrônico, cuja produção física aumentou a um múltiplo da produção industrial no primeiro trimestre. É provável que o período de quedas sucessivas dos anos anteriores, motivadas principalmente pelo ciclo de renovação de estoques típico dos bens duráveis de consumo e amplificado pela pandemia, tenha terminado (vide Carta de Conjuntura de novembro de 2023).      

Entretanto, devemos sempre considerar, ao formar expectativas sobre o futuro, que o Brasil é uma economia de lento crescimento, causado pela quase estagnação da produtividade agregada, pela baixa taxa de investimento e pelo gigantismo e ineficiência do setor público. Nessas condições, que não se modificam no curto prazo, o potencial de expansão econômica fica no intervalo de 1% a 2% ao ano. Tendo em mente essas limitações, os dados do primeiro trimestre para a economia em geral são positivos, como mostra o Quadro 2. O PIB vem crescendo a 1,4% ao ano, segundo o indicador do Banco Central (IBC-Br), a taxa de desemprego caiu perto de 1 ponto percentual e a renda real média, segundo o IBGE, cresceu 1,5% e 4% relativamente a IV-23 e I-23, respectivamente. Essas estatísticas, determinantes do consumo das famílias, são mais ou menos compatíveis com o crescimento de 2,5% e 3,3%, apurado pelo próprio IBGE, do volume de vendas do comércio “ampliado” (que inclui bens duráveis e veículos) (1).  

(*) Inclui bens de informática e comunicações

Para a economia como um todo, as projeções atuais indicam um crescimento mais equilibrado entre os vários setores, ao contrário dos anos anteriores. Prevê-se expansão do PIB pouco inferior a 2% e número próximo a este para a indústria e os serviços. A agropecuária, que foi o carro-chefe de 2023, deve apresentar pequena queda de produção, em virtude do ambiente climático menos favorável e da queda de preços internacionais. A esperada estabilidade da taxa de inflação (ao redor de 4%) e da taxa de câmbio também contribuem para maior estabilidade macroeconômica ao longo do ano.

Essa relativa estabilidade no curto prazo, contudo, não pode ser projetada para períodos mais longos, tendo em vista o profundo desequilíbrio das finanças públicas, que tem se agravado a partir de 2023 com a nova administração federal. A evidência macroeconômica do problema fiscal é o aumento contínuo da relação dívida pública-PIB e a permanência de taxas reais de juro acima das taxas internacionais. Ou seja, o Brasil tem vivido a armadilha da famosa combinação de políticas “easy fiscal-tight money”. A expansão fiscal continuada cria risco sistêmico, ao passo que o controle da inflação exige taxas reais de juro elevadas. Esta é a melhor receita para o baixo crescimento.   

(1) O comércio “restrito” cresceu 2,4% no trimestre

 

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

Fevereiro de 2024 – O cenário do FED para a economia dos EUA e suas implicações para o Brasil 

A última atualização do cenário para a economia dos EUA, divulgado pelo Federal Reserve Board, é mostrada no Quadro 1 abaixo. Este cenário serve de guia para a política monetária e pode ser alterado, de acordo com a interpretação daquele banco central dos dados que vão chegando ao longo dos meses.

Alguns pontos merecem destaque. Primeiro, a taxa de crescimento do PIB entre 2024 e 2026 permanece praticamente estável em 2% ao ano, o mesmo ocorrendo com a taxa de desemprego, projetada em 4% da força de trabalho. Segundo, a taxa de inflação que serve de base para as decisões de política monetária (PCE), assim como o núcleo do CPI, convergem para a meta de 2% ao ano em 2026. Terceiro, chama a atenção a morosidade da queda projetada da taxa básica de juro (fed funds) ao longo do período. Lembrando que neste momento a taxa efetiva está em 5,33% ao ano, ela cairia cerca de 0,75 ponto percentual a cada ano, até atingir 2,60% no longo prazo (após 2026). Implicitamente, o Fed parece considerar uma taxa real ao redor de 0,6% para a fed funds como o nível de equilíbrio.    

Quadro 1

 Cenário do Fed para a economia dos EUA: 2024-26

 

O ponto mais importante do cenário é o curso esperado da fed funds. Como sabemos, ela serve de base para toda a estrutura de juro nos EUA e estabelece um piso também para as taxas de juro ao redor do mundo, dada a elevada mobilidade de capital existente na maioria dos países. No caso do Brasil, a este piso deve ser somada a taxa de risco soberano (medida pelo CDS), hoje ao redor de 150 pontos-base. Isso nos daria um limite inferior para o juro interno (taxa overnight) da ordem de 6,5% para 2024. Considerando uma taxa de inflação de 3,8% ao ano, teríamos um piso de juro real de 2,5-3,0%.

Entretanto, essa conta simples tem que ser triplamente qualificada. Primeiro, a taxa internacional de juro não é o único nem o principal critério que define a política do Banco Central do Brasil. Seu objetivo fundamental é trazer a taxa de inflação para a meta de 3% ao ano. Enquanto a taxa de inflação estiver acima disso, a taxa Selic será fixada acima do piso internacional. Esta é a lógica do regime de metas adotado pelo Brasil. Por exemplo, hoje a taxa esperada para o final deste ano é de 9%, o que nos dá uma taxa real da ordem de 5%, considerando a inflação projetada de 3,8%.

Segundo, devemos considerar que o CDS tem sido bastante volátil, por refletir o grau de aversão ao risco no mercado internacional, como mostra o Gráfico 1. A recente guerra de Israel na Palestina e o possível envolvimento do Irã no conflito geram temores de que o preço do petróleo possa disparar, o que seria danoso para a economia mundial tanto do ponto de vista do crescimento quanto da pressão sobre a inflação. É provável que o CDS suba com o aumento do grau de aversão ao risco e o fenômeno do flight to quality característico dessas situações. Isso significa que, mesmo que a taxa de inflação caminhe para a meta em 2025, o BC manteria uma “gordura” significativa da taxa interna em relação ao piso internacional enquanto a situação política internacional se mantiver tensa e incerta.

Terceiro, o mandato do atual presidente do Banco Central do Brasil termina neste ano e o novo presidente será indicado por um governo que não tem poupado críticas à atual política monetária. Economistas ligados ao governo estendem essas críticas também ao estatuto de independência do BC e aos rigores do regime de metas de inflação. Esses fatos aumentam a incerteza sobre a política monetária a partir de 2025. Devemos lembrar as consequências da subserviência do BC aos propósitos do governo durante o governo Dilma (de 2011 a 2014): inflação superior a 10% ao ano e queda de PIB de 7% entre 2014 e 2016.

Esses vários aspectos devem levar o BC a ser bastante conservador em sua política monetária até o final deste ano, daí a atual previsão do mercado financeiro de que a taxa Selic não desça abaixo dos 9%.   

Gráfico 1

 Credit Default Swap (CDS-Brasil)

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee

Janeiro de 2024 – O balanço de pagamentos em 2023

O Brasil tem a típica estrutura de balanço de pagamentos dos países emergentes: déficit em conta-corrente e superávit na conta de capital. No caso brasileiro, o balanço de pagamentos como um todo tem-se mantido razoavelmente equilibrado, permitindo uma quase estabilidade do estoque de ativos de reserva mantidos pelo Banco Central. O déficit em conta-corrente é composto por superávit na balança de comércio (mercadorias) e déficit mais elevado na balança de serviços (serviços propriamente ditos e rendas enviadas ao exterior). Essa estrutura tem permanecido inalterada nas últimas décadas e assim deve permanecer por longo período no futuro, como mostra o Gráfico 1, cobrindo o período 1990-2023.

Nos últimos anos, o déficit em conta-corrente tem-se mantido dentro de limites bastante seguros (ao redor de 2% do PIB), coberto com folga pelo ingresso líquido de capitais de longo prazo (investimento direto). Isso tem sido possível graças aos crescentes superávits comerciais do país.

O Gráfico 2 mostra a composição das exportações pelas três classes de bens: primários, semi-industrializados e manufaturados. Na última década, o aumento do superávit comercial tem sido devido quase que exclusivamente à expansão de exportações dos produtos básicos, advindos da agricultura e da extração mineral, com pequeno aumento dos produtos semi-industrializados (sobretudo processamento de bens primários como carnes, soja e combustíveis fósseis) e praticamente estabilidade dos produtos manufaturados propriamente ditos. Essas tendências revelam a elevada competitividade internacional do país no setor primário e a baixa competitividade no setor industrial. A “prova do pudim” do grau de eficiência do setor industrial é sua capacidade de exportar. A baixa representatividade das exportações industriais (algo ao redor de US$ 100 bilhões/ano) é mais uma evidência da estagnação do setor industrial brasileiro, fenômeno conhecido como “desindustrialização”.

Como se sabe, esse desequilíbrio setorial da economia brasileira se deve a causas bem estudadas e batizadas de “custo Brasil”: sistema educacional precário, baixo investimento em ciência e tecnologia, tributação excessiva e caótica, deficiências de infraestrutura econômica, ineficiência do estado no provimento de bens públicos, proteção elevada ao mercado interno e outros. Porém, apesar de o diagnóstico ser bastante claro, pouco tem sido feito para remover os obstáculos à expansão da indústria.

Dois avanços recentes, que podem contribuir para remover alguns desses obstáculos são a reforma tributária, ainda em discussão no Congresso Nacional, e o programa “Nova Indústria”, lançado pelo Governo Federal em fevereiro de 2024. A reforma tributária pode ser um importante fator redutor do custo Brasil se conseguir redistribuir a carga tributária de forma equitativa entre os grandes setores da economia. Como se sabe, hoje o peso dos impostos está concentrado nas atividades industriais, com tributação bem mais leve sobre agropecuária e serviços. Mesmo mantida a carga atual, o novo sistema tributário reduzirá a carga incidente sobre a indústria e aumentará sua competitividade internacional no longo prazo. Entretanto, é necessário enfatizar que os efeitos serão modestos no curto prazo, intensificando-se ao longo dos próximos dez anos, dado o gradualismo de implantação do novo sistema tributário.

O programa “Nova Indústria” pretende disponibilizar 300 bilhões de reais de recursos públicos entre 2024 e 2026 para empréstimos a taxas preferenciais ao setor produtivo em geral. Pela primeira vez, teremos uma política industrial horizontal, na qual todos os segmentos podem se candidatar em igualdade de condições, ainda que existam prioridades na avaliação dos projetos de investimento. Considerando que o Brasil deve investir algo ao redor de 2 trilhões de reais em todas as atividades (18% do PIB) no corrente ano, o aporte de financiamento público de 100 bilhões/ano por tres anos representa cerca de 5% do total do investimento anual. Não é muito, o que significa que deverá haver acirrada competição na captura de recursos. No caso da indústria, particularmente importante será o financiamento de projetos de ciência e inovação tecnológica, assim como o financiamento de exportações industriais.

Entretanto, essas duas iniciativas (reforma tributária e financiamento de pesquisa, desenvolvimento e inovação) atacam apenas dois dos componentes do custo Brasil. Os demais, também importantes, como a má qualidade da educação e da formação de mão-de-obra, o peso excessivo do setor público e sua ineficiência (má qualidade dos serviços públicos, burocracia, imprevisibilidade da justiça) e as carências de infraestrutura continuam intocados. Portanto, embora o país esteja próximo de dar dois passos significativos na direção de uma alocação de recursos mais eficiente e do aumento da produtividade, a agenda de reformas estruturantes permanece aberta.

¹ O documento “Reindustrialização do Brasil: contribuições do setor eletroeletrônico” produzido pela ABINEE em julho de 2023, ao lado de outros similares produzidos pela CNI e por outros segmentos industriais, sugere uma agenda abrangente de reformas capazes de restabelecer o dinamismo do setor industrial no longo prazo.

Celso Luiz Martone – diretor da área de Economia da Abinee